Argentina
Raça X Nacionalidade (11)
Já debatemos e expusemos aqui as mais diversas visões de preconceito, de como elas se praticam, e de como são mascaradas ou abertas. O tema principal tem sua origem básica: o famosíssimo "caso Grafite", já mencionado aqui.
O objetivo, relembrando o caso, é trazer à tona dois fatos:
Fato 1: Leandro Desábato, jogador argentino, praticou uma ofensa ao jogador Grafite, brasileiro, com cunho pejorativo à cor da pele deste.
Fato 2: a imprensa, brasileira, exerceu uma perseguição ao jogador Desábato, argentino, associando fatos negativos à nacionalidade deste. Também a "justiça" brasileira praticou excessos no caso: além do abuso de autoridade, uma deturpação do crime cometido pelo jogador.
A história, todos lembram: a TV flagrou a ofensa, e a repetiu de modo incessante. Ao final da partida,
o delegado Oswaldo Nico Gonçalves entrou em campo e conduziu o zagueiro argentino ao 34° DP. Desábato ficou detido cerca de 37 horas, a fiança foi paga e ele liberado. A imprensa bate na mesma tecla durante quase um mês.
(o mesmo não aconteceu com Antônio Carlos, jogador brasileiro: praticando ofensa tão grave quanto a de Desábato - contra Jeovânio, brasileiro, em 2006 -, Carlos jamais foi detido e, apesar de acusado, não foi julgado pela justiça comum, apenas pela desportiva, o que demonstra claramente que outro racismo foi praticado no "caso Grafite")
Mais de 4 anos depois do ocorrido, alguns pontos têm sido esclarecidos. E pode haver maior esclarecimento que a palavra do próprio Grafite? Pois o jogador reconheceu que errou na forma como conduziu o caso e disse, em entrevista à Folha de S. Paulo em 04 de abril deste ano, que "virou mais um espetáculo do que um caso. Gente na televisão me defendendo, criticando, a mídia ficou muito encima, não era para tanto, foi um exagero a ênfase dada". É de destacar que Grafite decidiu por não dar sequência ao processo (!).
Procurando na internet, é possível encontrar artigos e opiniões de gente importante sobre o caso, e a maioria delas de forma contrária à proporção que o "caso Grafite" tomou.
Um desses textos é "Mídia usa Grafite para pichação" (18/04/2005) do jornalista Alberto Dines, um dos maiores do Brasil, no site "Observatório da Imprensa". A leitura é altamente recomendável para que seja feita uma reflexão sobre o racismo e a xenofobia, e sobre o que, de fato, é o preconceito. Muitas vezes, ele acontece sem que se perceba - pois está intrínseco.
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Foi injúria e injúria racista, disso ninguém duvida. Nem mesmo a torcida do Quilmes. Racismo no Brasil é crime, crime exige punição. Mas racismo de argentinos contra brasileiros, e ainda mais num campo de futebol, situa-se numa instância especial: é crime de lesa-pátria. Atentado à honra nacional. Casus belli.
A mídia, a começar pela eletrônica, e em seguida endossada pela impressa, aproveitou a infração cometida pelo zagueiro portenho Leandro Desábato contra o atacante brasileiro Grafite para armar um circo onde, em certos momentos, o repúdio ao racismo ficou abafado pelo berreiro e ímpetos linchatórios.
A prisão do infrator ocorreu na quarta-feira (13/4) à noite, ficou na primeira página da grande imprensa e da imprensa popular durante dois dias, foi acompanhado minuto a minuto por vibrantes boletins radiofônicos, abriu a "escalada" dos telejornais no horário nobre de quinta à sexta, e ninguém se deu conta de que aqueles que apelidaram o jogador Edinaldo Batista Libânio de Grafite são tão racistas quanto Leandro Desábato. Com o agravante de que uma alcunha não é fruto de um impulso, ato impensado, mas hábito que se repete lentamente até marcar como ferrete.
Grafite foi injuriado em campo por um adversário estrangeiro que não conseguiu detê-lo numa jogada, mas a injúria, na realidade, começou muito antes, quando aquele garoto endiabrado driblava todo mundo na pelada de várzea em Jundiaí e seus companheiros resolveram transformar a cor de sua pele em estigma. Que nenhum radialista e jornalista brasileiro teve o cuidado de evitar, condenar, corrigir.
Bode expiatório
O grande Leônidas da Silva (1913-2004) foi consagrado como o Diamante Negro depois do seu sucesso internacional, mas o pobre Edinaldo, filho dos tempos politicamente corretos, ganhou fama como Grafite. Não pegava bem chamá-lo de Tiziu, Tição, Crioulo, Carvão ou mesmo de Saci. Grafite disfarça o pejorativo racial com algo de "artístico". Mas Grafite equivale a Piche. Piche cola, gruda, é indelével.
Incapaz de perceber o que havia de insultuoso no apodo Grafite, a mídia aproveitou o incidente para pichar os argentinos. Pichar e purgar velhas xenofobias contra estrangeiros. Como não podem chamar os argentinos de gringos, muitos comentaristas esportivos servem-se do errôneo cucarachos, baratas, para designar genericamente todos os hispano-americanos. E reclamam da arrogância dos portenhos quando nos chamam de macaquitos.
A grande verdade é que a mídia brasileira, no lugar de oferecer à opinião pública padrões edificantes e qualificados, nivela-se aos padrões mais desqualificados e aviltantes que capta. A mídia vai na onda, e quando esta onda parte dos meios de comunicação mais populares torna-se impossível distinguir jornalões de jornalecos, classe A da classe E, o camarote da galera.
Leandro Desábato foi preconceituoso e agressivo. Mas foi também bode expiatório para a exibição de uma carga de intolerância não muito diferente. Serviu para lembrar que já temos uma legislação para acabar com o ancestral racismo, falta agora um estímulo para eliminar os ressentimentos.
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