Muito Além do Futebol... (14)
Argentina

Muito Além do Futebol... (14)



Engraçado: A xenofobia nunca foi discutida no Brasil da maneira como deveria ser feita.

Segundo apuramos aqui no blog, de acordo com a lei, a ofensa relativa à origem da pessoa é passível da mesma punição e consiste no mesmo crime que a discriminação dirigida à "cor da pele, raça, etnia, religião". Mas, como na grande maioria dos casos, no Brasil a lei diz uma coisa mas é aplicada de outra forma.

A verdade é que, por aqui, somente a questão racial tem sido debatida de forma mais aberta, e punições têm sido aplicadas. No entanto, como nos mostrou o post citado acima, até nisso ocorrem arbitrariedades e deturpações da lei. Felizmente, a questão sexual --a homofobia-- tem sido posta à prova, mas frases como as do Governador do Paraná mostram que ainda há muito por se lutar e conquistar.

No entanto, parece que somente a questão da nacionalidade é deixada de lado quando se lida com os termos "preconceito", "discriminação", "racismo", "ódio". Geralmente, a desculpa é que "são só brincadeiras" e que "brincamos (?) com nós mesmos" (um exemplo claro é o "caso Maitê Proença", onde a atriz ofendeu os portugueses e depois desculpou-se, a pedido dos nacionais).

Para você, há diferença?...

No caso dos argentinos, tudo é muitíssimo bem mascarado com o pano do futebol: "não os odiamos, apenas torcemos contra suas seleções"; "o que existe não é preconceito, e sim rivalidade", e por aí vai. Samba de uma nota só. E essa questão permanece assim: 1) "não ofendemos, brincamos"; 2) "se ofendemos, é porque eles nos ofendem mais".

O texto a seguir, escrito por Sérgio Rosa e publicado no mesmo "Overmundo" do post anterior, mostra como, mais uma vez, o futebol serviu como "bode expiatório" para algo maior. Muito maior.

Friso: a pizzaria era em Belo Horizonte.______________
Assistindo com o inimigo
Verde, amarelo. Azul e branco. As cores de dois países, as cores de uma enorme rivalidade, cores que se odeiam. É uma história antiga. No futebol nos odiamos, quando se refere àquelas quatro linhas. Torcemos contra, esperamos que sofram uma derrota humilhante, desejamos até morte.

Vou logo dizer. Para mim, isso é uma enorme bobagem. Vai muito além da relação passional que temos com o esporte. Eu sou aquele brasileiro que não compreende muito bem algumas reações tão exaltadas contra nossos hermanos.

Me envergonho com algumas delas, é verdade. E não achem que é uma questão de boa vizinhança. Bom, talvez isso tenha a ver um pouco com a minha relação com o futebol. Explico: o futebol deles se parece com o nosso. E, para quem gosta do jogo, por que torcer contra um time que joga pra frente, com habilidade, que gosta de marcar gols? Não é essa a razão que o mundo inteiro tem o Brasil como segunda seleção?

Se é para torcer contra alguém, prefiro que seja o futebol insosso e extremamente previsível inglês. Temos que reconhecer: Saviola, Riquelme, Messi, Aimar e Sorin teriam um lugarzinho garantido no nosso time. Não consigo torcer contra, para mim, o que vale, é a beleza: a jogada bem tramada, a tabela bem feita e o gol furado. Ok, me passem o crachá de piegas duma vez.

E desde que Carlitos Tevez passou a frequentar nossos gramados, algo foi chacoalhado no orgulho brasileiro. Graças a Deus.E, por incrível que pareça, o ódio não parece ser recíproco. Já ouvi pessoas que foram à Argentina dizer que eles admiram o nosso futebol (afinal, quem não admira? Mas superar a rivalidade para admitir isso é outra coisa). E não me refiro aqui à voz do especialista que anuncia nas páginas do Clarin: ?O Brasil está um degrau acima de qualquer outro time no futebol?.

A admiração vem do taxista, do garçom, do cidadão comum, que confessa com olhos brilhantes que aquela vitória, na fase de classificação para o mundial da Alemanha foi um grande feito e encheu o país de orgulho. Aquele grito tão comum de se ouvir nas arquibancadas dos nossos rivais ?si, se puede? nunca foi tão verdadeiro. Eles ganharam dos gigantes, destronaram os reis com aqueles três gols.Opa, mas espere aí. O Brasil jogou foi contra a Croácia. E um jogo morno, é verdade.

Ao contrário dos ânimos dos torcedores brasileiros na pizzaria argentina, onde eu resolvi encarar essa dura missão que é assistir a uma partida de futebol num ambiente tão caótico. Como todos os bares das redondezas, o Pizza Sur estava completamente lotado, uma mistura de amarelos verde e azul, das camisas brasileiras e das cores do Boca Juniors.O atraso inevitável me colocou nas mesas afastadas, longe da TV. O bar é novo, numa vizinhança repleta deles.

As pessoas chegam e vão ocupando as mesas, boa parte dos torcedores que ali estavam não tinham percebido que aquele era um território inimigo. Nem as bandeiras, nem a foto do Che, o pôster de Gardel... nem mesmo o sotaque de Gustavo, proprietário, que fez questão de circular com a sua camisa do Boca. Já me conformava: preparava para assistir um espetáculo de cabeças que se levantavam, braços que pediam uma cerveja, corpos que iam ao banheiro e trocavam de lugares... tanto faz o que se passava na televisão.

O gol não saía. Os croatas, dispostos a conquistar um empate glorioso, deixava a torcida impaciente. Um grupo exaltado à minha frente tinha cheiro de confusão. Alguém precisava ser culpado por isso. Como um time de craques como o nosso era incapaz de marcar um gol contra a fraca Croácia? Alguma espécie de mandinga segurava as pernas de Kaká, Ronaldinho Gaúcho e companhia.

Eduardo Galeano já dizia que até o covarde mete medo, quando está no meio de seus pares. O problema para fanático não é o aquilo que acontece em campo, o seu caso é com a arquibancada, com a torcida adversária. Nesse caso, representada pelas bandeiras da Argentina. Elas não duraram muito.

Sem se aperceberem que cometiam um dos atos mais ofensivos (ainda mais numa Copa) contra uma nação, os torcedores, aqueles mesmos que ocupavam algumas mesas à minha frente, arrancaram todas elas. Coincidência ou não, o gol brasileiro saiu logo em seguida, enquanto alguns ainda seguravam pedaços argentinos nas mãos. Seguiram-se comemorações aos gritos de ?era a bandeira! Era a bandeira!?. A ofensa virou uma piada sem graça.

Que me acusem de ser sério demais, (?é tudo uma brincadeira?, afirmarão alguns), mas a atitude foi um tanto quanto desnecessária e desrespeitosa com os argentinos que ofereciam ali uma trégua para a nossa guerra eterna. Pior que um carrinho por trás. Gustavo não perdoou, e a punição veio, minutos mais tarde, com a expulsão dos responsáveis, ao fim do primeiro tempo. Junto com eles me retirei, rumo a um território pacífico, onde eu poderia assistir finalmente a estréia da seleção.



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