Isso é Jornalismo? (26)
Argentina

Isso é Jornalismo? (26)


No último sábado, Maradona completou 50 anos.

Como recentemente declarou o jogador "Alemão", 'Essa rixa entre Brasil e Argentina era um assunto que ele [Maradona] nem tocava. Esse tipo de comparação (com o Pelé) começou mais do lado de cá'.

Sim. Já debatemos muito sobre isso e não é necessário ir além. Mas vale comentar as matérias brasileiras que estão 'celebrando' o aniversário de Maradona. A tônica é sempre a mesma: "Pelé foi muito melhor" e "só argentino pra achar o contrário".

(Ora, por que 'sempre' afirmar a superioridade de Pelé? Se ele foi --e é provável que tenha sido-- melhor nos campos, qual a necessidade de a todo momento lembrar isso? E por que diminuir tanto a Diego? Se ele foi tão reles, não seria redundante dizer que Pelé o tenha superado?)

Uma das matérias que mais chamou atenção nesse sentido foi a publicada pelo portal iG, expondo "Vinte Diferenças" entre os dois (aqui o link para a chamada), conforme video a seguir:




As tais diferenças serão aqui analisadas em blocos.

1) Habilidade

O argumento mais usado, e endossado pelo próprio Pelé, se dá nos fundamentos "cabeceio" e "ambidestria": segundo os defensores do camisa 10 brasileiro, Maradona era péssimo com a cabeça - dizem, como visto, que seu único gol assim foi o com a mão - e pior ainda quando precisava usar a perna direita.

Inverdades: Maradona fez diversos gols com a cabeça, e protagonizou, inclusive, lances decisivos quando precisou utilizá-la (e que tal o "cruzamento" que resultou em gol na final da Copa da UEFA?).


Sobre o fato de não usar a perna direita (na matéria Maradona é descrito como 'canhoto no último', como se isso fosse um defeito de caráter), mais uma vez temos belos gols e outros momentos cruciais em que a perna direita foi fundamental:


Ademais, que importância teria se ele de fato não soubesse usar a direita? Nenhum outro jogador foi capaz de driblar times inteiros usando uma perna só.

2.1) Conquistas individuais

A primeira e mais comum das 'provas' de que Pelé foi muito superior a Diego se dá pelo número de gols: Pelé teria feito 1284, conforme a narração, ante 358 ("e olhe lá!") de Maradona.

Em primeiro lugar, o número de gols não pode ser verdade absoluta: Maradona, por exemplo, tem 126 gols a mais que Garrincha (em menos jogos), por muitos brasileiros considerado melhor que Diego - ou então, Túlio Maravilha foi melhor que Ronaldo Fenômeno?... Pelé é, na soma total, o 4º maior artilheiro da história (atrás de Josef Bican, da Áustria, Gerd Muller, da Alemanha, e Arthur Friedenrich, do Brasil), e em jogos oficiais de primeira divisão fica atrás de Romário (!).

Difícil defender que Pelé tenha sido inferior a qualquer um deles.

Porém, num raro momento de lucidez, o video aponta para a real razão de Pelé ter tantos gols a mais que Maradona: a posição - e a função - desempenhada por cada um dentro de campo: "Pelé era flecha, Maradona cérebro", diz o narrador.

Quando começou sua carreira, na Argentina, Maradona foi artilheiro do campeonato nacional por 3 anos seguidos (1979, 1980, 1981), dos 19 aos 21: se somarmos as temporadas 78-79 e 79-80, por exemplo, teremos uma média de quase um gol por jogo (ele marcou 74 gols em 76 jogos)! Maradona, então, jogava como segundo atacante, posição semelhante à de Pelé no Santos e Seleção Brasileira.

A partir de sua mudança para a Europa, a liderança e a responsabilidade de Maradona foram mudando, e ele diminuiu seu número de gols. Porém, mesmo já atuando na armação das jogadas, foi artilheiro do Campeonato Italiano na temporada 1987-88 (!), feito dificílimo de ser conquistado.

2.2) Conquistas coletivas

Em seguida, a matéria fala dos títulos pela seleção que ambos conquistaram quando jovens: Pelé foi campeão mundial aos 17 anos, enquanto que Maradona foi deixado de fora da copa de 1978: isso é tratado como um fracasso individual de Diego, esquecendo-se da pressão/preferência popular da época (Maradona participou de amistosos já em 1976 e vinha sendo aclamado) e que as decisões desse tipo são sempre pessoais (foi César Menotti que não quis levá-lo, em situação parecida à do citado Ronaldo na Copa de 1994, preterido por Parreira em lugar de Viola!).

Tanto é que, um ano depois, com o mesmo técnico no comando, Maradona seria campeão mundial juvenil (ou 'sub-20'), ganhando também o prêmio de melhor jogador e sendo o maior marcador - e lá fez um golaço de cabeça! O texto ironiza: "se Pelé foi campeão profissional aos 17, quando seria juvenil?'.


Especificamente sobre as Copas, "Pelé ganhou 3; Maradona, uma só", diz a narração. Uma 'só', como se isso fosse algo banal, corriqueiro. É importante ressaltar que na Copa de 1962 Pelé jogou apenas a primeira partida, e que aquele título é todo creditado ao supramencionado Garrincha. A rigor, tanto Pelé quanto Maradona têm duas finais de Copa em seus currículos.

Acontece, porém, que tanto em 1958 quanto em 1970, Pelé foi parte de uma verdadeira constelação de jogadores (na Suécia Didi foi considerado o melhor jogador do torneio, e o francês Fontaine foi o artilheiro), enquanto que em 1986 (campeão) e 1990 (vice) Maradona foi uma estrela tão grande quanto ou até maior que o Garrincha de 1962.

Na copa de 1986, além de Bola de Ouro Maradona teria sido também o artilheiro do Mundial não fosse o juiz ter anulado um gol legítimo contra a Itália (marcou uma falta absolutamente inexistente), ainda na primeira fase, e outro contra o Uruguai (nas oitavas-de-final), assinalando impedimento também inexistente.

Pelé nunca aproximou-se da artilharia em nenhum de seus 4 mundiais disputados: em sua maior performance, 1970, fez 4 gols contra 10 de Gerd Müller.


Por fim, no segundo e derradeiro momento de lucidez, a matéria aponta para o fato principal: Maradona foi capitão de sua seleção, e ergueu a taça, coisa que Pelé nunca fez. Aliás, é bom que se diga: Maradona é o recordista de partidas disputadas como capitão na história das copas (!): 16. Artilheiro, armador das jogadas e capitão. Pouco?

3) Pelé sabia revidar; Maradona, não.

Esse é um dos trechos mais apelativos de todo o video, e mostra, além de uma tremenda arrogância ao classificar 'revides' como qualidades de um jogador, uma omissão muito grande de fatos: A cena da batalha campal mostrada fora do contexto no video com o intuito de criticar Maradona omite um fato importantíssimo: um ano antes, o jogador Goikoetxea, do mesmo Athletic de Bilbao, quebrou o tonozelo do argentino, que teve sua carreira ameaçada (video abaixo).


Pelé ficou conhecido dentro dos gramados não apenas por saber revidar, mas por ser, ele mesmo, um dos autores de atos violentos: o grande jogador português, Eusébio, declarou que "para levar vantagem, Pelé era muito violento às vezes". O craque lembrou ainda de um duelo, em 1964, em que Pelé chegou a agredir os atletas até mesmo no rosto.

Maradona é muito lembrado por sua entrada (de fato, um ato desleal, reprovável) no brasileiro Batista, em 1982, enquanto que Pelé tem atitudes relevadas: em amistoso no ano de 1965, contra a Alemanha no Maracanã, Pelé quebrou a perna do jogador Kiesman. E, em 1968, a vítima foi o brasileiro Procópio, então no Cruzeiro: o zagueiro ficou 5 anos se tratando para voltar a jogar, e teve um final melancólico.

Para finalizar, sempre que se fala em Pelé e "violência nos gramados", só se lembra das agressões sofridas por ele no jogo Brasil X Portugal, na Copa de 1966; para Diego Maradona, não há qualquer vontade de lembrar dois "recordes" dele em Copas: foi o jogador que mais faltas sofreu numa mesma partida (23 - !!! -, no duelo Argentina X Itália, em 1982) e numa mesma edição (1990, 50 faltas recebidas no total) do torneio.

4) Clubes

A matéria segue em comparações que seriam justas não fossem tão enviesadas, como ao citar que Pelé jogou somente pelo Santos, no Brasil, e Maradona defendeu 3 camisas diferentes, enquanto em seu país natal: Pelé é visto como "fiel" e "honroso", e Maradona é apresentado quase que como um traidor.

Quando o assunto é os clubes defendidos fora do país, além de não assumirem o futebol europeu como o mais importante de todos, novamente Pelé é tratado como um ser altruísta: "tentou fazer o futebol pegar nos EUA" (para isso, não dispensou 'levar' consigo Carlos Alberto Torres e Franz Beckenbauer, e também o italiano Chinaglia, que foi artilheiro da MLS!).

Também é omitido que Maradona jogou no Sevilla FC, na Espanha, e é idolatrado por aquelas bandas.


5) Fora dos gramados

A verdade sobre a intenção da matéria começa a aparecer de fato quando compara os dois no extra-campo: sempre Pelé um exemplo de retidão ("é gentil com a imprensa", "só pôs álcool na boca aos 35 anos"), e Maradona com destaques negativos: 'famoso por seu envolvimento com drogas'. Pelé não foi lembrado por suas manobras escusas, chegando até a instituições de renome mundial.

Quando fala do que cada um fez no futebol além de jogador ("Pelé foi comentarista de jogos, Maradona apresentador de TV", "Pelé nunca quis ser técnico, Maradona quis e melhor seria não ter sido"), é também sempre carregada de ironia.

O "cabelo milagroso", altar de Maradona na Itália
Fala-se, também, da idolatria a Maradona em seu país ("tem uma igreja") como sendo algo ruim, omitindo a real história da deificação de seu personagem: muitos anos antes na Itália, em Nápoles, Diego já era tido por "miraculoso"(ver foto ao lado)e dizem só ser menos conhecido que o santo padroeiro: na  Copa de 2010 os napolitanos enfeitaram a cidade com bandeiras da Argentina, porque Maradona era o técnico do selecionado!

Um dos pontos mais grosseiros, no entanto, é ridicularizar as preferências políticas e o engajamento de Maradona para elogiar a "habilidade política" de Pelé": "Maradona é um daqueles 15 no mundo que ainda se dizem comunistas'.

Em seguida são opostos o Pelé que foi honrado na Inglaterra com o Maradona que é 'amigo de Fidel Castro': ser amigo do presidente cubano em NADA diminui a importância de alguém e Maradona tem, sim, tremendo respeito fora da Argentina e das 'ditaduras latinas'.

Maradona é bem recebido tanto na Índia como na África do Sul; se vai à França é ovacionado como havia sido no Canadá; é uma figura ímpar num pequeno município da Cordilheira dos Andes e embaixador mundial de uma das maiores marcas de relógio da Suíça.

E que tal um cidadão que recebe, da Universidade de Oxford, o título de "Mestre Inspirador de Sonhos"?


6) Pais & Filhos

Essa diferença chega a ser ridícula: pela matéria, o mais importante é a quantidade de filhos: 7 a 3 para Pelé. Mas dentro desses sete certamente está contabilizada Sandra Regina, negada durante toda a vida pelo "Rei". O maior detalhe: quando de sua morte, somente o que Pelé fez foi mandar flores em seu velório.

Já Maradona pode dizer que, apesar de todos os erros cometidos, tem o orgulho de ter as filhas ao seu lado.


Na verdade, a única diferença motivadora desse comparativo foi a apontada por último: "Pelé é brasileiro; Maradona argentino".



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