Interessante texto publicado na Carta Capital falando sobre as investigações do período ditatorial no Brasil e na Argentina.
Está na hora de mudar aceitar o padrão internacional de punição das violações dos direitos humanos e de rever a Lei da Anistia
Por Leonardo Avritzer
A morte do ex-ditador argentino Rafael Videla na prisão na semana passada tornou relevante responder mais uma vez algumas perguntas: por que o Brasil é tão diferente da Argentina no que diz respeito à punição das violações dos direitos humanos? Por que a nossa comissão da verdade tem resultados tão tímidos depois de um ano de funcionamento? Por que no Brasil ninguém ainda foi punido por crimes cometidos durante o período autoritário?
Neste artigo tentarei responder a estas questões.
Os regimes autoritários do Cone Sul foram muito semelhantes, na maneira como eles chegaram ao poder e muito diferentes na maneira como eles realizaram as transições para a democracia.
Todos os regimes autoritários do Cone Sul chegaram ao poder violando as regras da democracia e derrubando governos legitimamente eleitos. Ainda assim o autoritarismo variou em intensidade e isso influenciou nas transições. O Brasil, como sabemos, teve uma transição para a democracia pactada entre o regime autoritário e a oposição e a lei da anistia foi parte da transição pactada.
A anistia no Brasil foi, ao mesmo tempo, reivindicação da sociedade civil e negociação entre o regime autoritário e a oposição. Ao ser aprovada pelo Congresso Nacional ela permitiu o retorno dos exilados e a liberação de presos políticos.
A Argentina viveu um processo muito diferente. Em primeiro lugar, a dimensão do terror foi diferente e ele terminou com a morte de quase todos os desaparecidos. Mas a grande diferença entre a Argentina e o Brasil foi o colapso do regime autoritário argentino depois da guerra das Malvinas. Ele permitiu uma transição rápida pelo qual a auto-anistia concedida pelos militares foi revogada quase que imediatamente pelo governo Afonsin. Foi este ato que permitiu o julgamento dos principais membros das juntas militares, sua condenação e a anulação em 2010 da anistia aos militares decretada pelo governo Menem.
Não vou aqui afirmar que se fez justiça na Argentina, uma vez que a justiça é um conceito complexo e sabemos que muitos violadores de direitos humanos não foram punidos. Mas afirmaria que a sociedade argentina acertou contas com o seu passado e hoje é um país no qual os direitos humanos são profundamente respeitados.
Assim, se pensamos as diferenças entre os dois países, podemos localizá-las em dois pontos: a natureza da transição e a forma da anistia. Podemos apontar que a transição pactada brasileira retirou a punição das violações dos direitos humanos da nossa pauta política. Este é o motivo pelo qual não houve no Brasil punição de torturadores, julgamentos de militares. Tudo o que tivemos foi a indenização dos presos e perseguidos pelo governo na boa tradição brasileira de pactuação entre as elites com responsabilização única do estado.
O Estado é responsável pelo autoritarismo mas, ao que parece, os indivíduos não são. No que diz respeito à anistia, é possível afirmar que no Brasil ela expressa tanto elementos das reivindicações da sociedade civil quanto também a vontade do regime de auto-anistiar os seus membros.
Neste sentido, a anistia brasileira teve um componente societário que não podemos negar. No entanto, é importante entender que a anistia brasileira expressou uma correlação de forças entre o campo democrático e o regime autoritário naquele momento, em 1979.
Neste sentido, foi possível naquele momento.
Não existe nenhum motivo para mantê-la e, especialmente, não existe nenhum motivo para manter a impunidade dos membros do regime autoritário que foi imposta à sociedade civil brasileira naquele momento.
Está na hora de mudar esta tradição, aceitar o padrão internacional de punição das violações dos direitos humanos e de rever a lei da anistia.
Este ato poderá integrar o Brasil no rol das nações que punem violações dos direitos humanos no passado, para que seja possível puni-las no presente.
Os dois temas anteriores nos trazem ao tema da avaliação da comissão da verdade. As comissões da verdade que tem origem na Argentina e na África do Sul são importantes no sentido de revelar para a cidadania dos seus países os crimes cometidos durante os regimes autoritários.
É sabido que os aparatos de repressão dos regimes autoritários agiram, quase sempre, em uma zona cinzenta impossível de ser conhecida durante o próprio autoritarismo. Os detalhes sobre os desaparecidos na Argentina ou no Brasil, ou sobre estruturas específicas da repressão políticas só são completamente apreendidos pelos trabalhos de uma comissão da verdade.
O Brasil, neste aspecto, está atrás de quase todos os países latino-americanos.
A criação tardia de uma comissão da verdade está relacionada à tradição política de pacto entre as elites que regeu a democratização brasileira. Ainda assim, a atual correlação de forças no país gerou uma comissão da verdade que pode desempenhar dois papéis: em primeiro lugar, ela pode realizar um acerto de contas mínimo com o passado ao revelar o paradeiro de pessoas desaparecidas e a situação a que foram submetidos os presos políticos no Brasil.
Em segundo lugar, ela pode reintroduzir o debate sobre o pesado legado do autoritarismo para a sociedade brasileira chamando a atenção sobre a impunidade na sociedade brasileira sobre como foi feita a transição política no país.
Em ambos os casos, há um conceito de verdade a ser explorado: aquela na qual a verdade é resultado de um debate na esfera pública. É exatamente neste aspecto que a comissão da verdade está deixando a desejar. Até Paulo Sérgio Pinheiro assumir sua coordenação, a comissão da verdade não se preocupou em se expressar publicamente. Agora que ela está se expressando, tem se mostrado pouco preparada para a empreitada.
De um lado, é verdade que o seu regimento não deixa espaço para uma ação mais incisiva. Assim, é fundamental este momento em que a comissão da verdade vai a público no Brasil. É ele que decidirá o conceito público de verdade, aquele que a opinião pública brasileira terá acerca do que passou no nosso país entre 1964 e 1985.
O engajamento dos seus integrantes e da opinião pública neste debate poderá decidir a visão que a população terá sobreo autoritarismo e a democracia no Brasil.
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